sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Nasa: astronautas viajarão como turistas em naves russas

A Cidade das Estrelas costumava ser um não-lugar, uma base militar secreta a nordeste de Moscou que não aparecia em mapas. A União Soviética treinava aqui os seus astronautas para lutar no maior campo de batalha da guerra fria: o espaço.

No entanto, atualmente a Cidade das Estrelas serve como centro da arduamente conquistada parceria entre Estados Unidos e Rússia, e nela treinam os astronautas para voar à bordo da espaçonave Soyuz. E dentro de dois anos, a Cidade das Estrelas vai ser o único lugar a mandar astronautas de qualquer nação para a Estação Espacial Internacional.

O hiato está chegando: de 2010, quando a Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (Nasa) encerrar o programa de ônibus espaciais, a 2015, quando a nova geração de espaçonaves americanas deve ficar pronta, a Nasa antecipa que não terá capacidade de levar seres humanos ao espaço e vai depender da Rússia para o transporte de pessoal à a estação espacial de US$ 100 bilhões, comprando assentos nos vôos do programa Soyuz como se fosse um turista.

Com o aniversário de 50 anos da Nasa este mês, o plano da administração Bush de aposentar as três naves espaciais da nação e trabalhar em um retorno à Lua impulsionou o programa espacial dos EUA em direção a controvérsias na política nacional e na geopolítica.

Os senadores John McCain e Barack Obama denunciaram o hiato e promoveram seu compromisso para com o programa espacial durante viagens à Flórida, onde milhares de trabalhadores perderão seus empregos quando o programa do ônibus espacial acabar. O antagonismo entre os Estados Unidos e a Rússia sobre o conflito na Geórgia e outros temas está tornando nebuloso o futuro da parceria de 15 anos entre os dois países na exploração do espaço, e bem quando a Nasa vai depender da Rússia como nunca.

O administrador da Nasa, Michael Griffin, chamou a situação de "extrema e sem precedentes". Em uma mensagem de e-mail que mandou para seus principais conselheiros em agosto, Griffin escreveu que "os eventos se desenvolveram de uma forma tal que torna claro como foi imprudente da parte dos EUA adotar uma política de dependência deliberada quanto a outra potência".

Griffin está preocupado a ponto de ordenar que seus funcionários estudassem manter em operação as naves antigas depois de 2010. Ele fez isso, declarou o administrador em uma entrevista no mês passado, "cerca de cinco minutos depois que os russos invadiram a Geórgia, porque eu estava prevendo que isso ia acontecer".

Mas alertou que qualquer extensão no tempo de uso seria custosa e poderia atrasar ainda mais o retorno da Nasa à Lua, e ameaçar o papel dos EUA como a principal potência espacial.

No mês passado, a China fez o terceiro lançamento bem sucedido da sua espaçonave Shenzhou VII e a primeira caminhada no espaço de um de seus astronautas. O governo chinês disse que espera estabelecer uma estação espacial e eventualmente enviar uma missão à Lua. Os EUA pretendem retornar à Lua pelo menos até 2020; alguns analistas acreditam que a China pode chegar lá antes.

A interrupção no controle americano sobre o acesso ao espaço incomoda bastante algumas pessoas em Washington, dentre eles o senador Bill Nelson da Flórida, um dos principais defensores do programa espacial. Em uma entrevista, Nelson disse que foi "imperdoável" o programa espacial do país ter se colocado em uma posição de dependência em relação a um parceiro tão politicamente volátil. "Nós temos um primeiro ministro russo que acha que é um czar", ele disse sobre Vladimir Putin, se referindo à ação militar russa na Geórgia.

Os Estados Unidos tiveram períodos em que seus astronautas não podiam voar ao espaço: do final do programa Apollo em 1975 até o começo dos vôos do ônibus espacial, em 1981, e depois da perda das espaçonaves Challenger em 1986 e Columbia em 2003. Mas o intervalo que se aproxima pode ser o maior de todos se o desenvolvimento dos novos foguetes da Nasa for significativamente retardado.

Apesar de os impactos do hiato serem conhecidos desde que Griffin começou a administrar a agência em 2005, o Comandante Scott. Kelly, da Marinha, um astronauta que entrou em órbita duas vezes, alertou em abril que a idéia dos Estados Unidos não poderem mandar seres humanos para o espaço em seus próprios foguetes seria um choque. "Uma grande parte do público americano vai se surpreender", ele disse, complementando que muitas pessoas vão gritar "quem deixou que isso acontecesse?".

A administração Bush optou por abrir mão do acesso da nação ao espaço por cinco anos e se dedicar a uma nova fase nas viagens espaciais. A administração decidiu aposentar os ônibus espaciais e, em janeiro de 2004, anunciou uma guinada "na visão da exploração do espaço".

Segundo o plano, a Nasa iria parar de usar a sua frota de naves velhas e perigosas e criar um novo programa de lançamentos, o Constellation, construído com foguetes Ares e cápsulas Orion que foram desenvolvidas para permitir que os astronautas retornassem à Lua e até explorassem Marte e asteróides próximos da Terra.

Para passar de um programa a outro sem inflar o orçamento anual da Nasa, de US$ 17 bilhões, a administração resolveu diminuir o ritmo de missões do programa do ônibus espacial e conferir prioridade ao Constellation. A decisão sempre foi retratada como difícil, mas nos últimos meses as críticas vêm pipocando. Os candidatos presidenciais republicano e democrata, por exemplo, prometeram que manteriam a presença norte-americano no espaço.

"Como presidente, agirei para garantir que os nossos astronautas continuarão a explorar o espaço, e não apenas pegando carona em vôos de terceiros", declarou McCain alguns meses atrás. Obama criticou o que ele define como "mau planejamento e verbas inadequadas" que resultaram nessa situação.

Ambos os candidatos dizem que a Nasa deveria estudar a possibilidade de manter o programa do ônibus espacial em operação, com pelo menos uma missão adicional, e tentar acelerar o desenvolvimento do Constellation com recursos adicionais.

Mas se surgir dinheiro novo, ele chegará tarde demais para reduzir de maneira considerável o tempo de desenvolvimento do novo aparelho. "Os problemas se tornaram insolúveis, a essa altura", diz Griffin.

A crescente frustração que ele sente ficou clara em sua mensagem de e-mail a assessores da agência, em 18 de agosto, instruindo-os a estudar a possibilidade de missões adicionais.

"Em um mundo racional, teríamos sido autorizados a escolher a data de retirada do ônibus espacial com base na disponibilidade do Ares/Orion", ele escreveu. Mas no governo, "aposentar o ônibus espacial é uma jihad, e não uma decisão de engenharia e gestão de programas".

Depois que o jornal Orlando Sentinel reproduziu a mensagem, Griffin divulgou um comunicado no qual informava que a mensagem "não informava sobre o contexto de minhas declarações, e nem deixava claro meu apoio às políticas do governo".

Naquele momento, um projeto de lei vital para os planos da Nasa para cobrir o período em que não disporá de espaçonaves - permissão do Congresso para a aquisição de vagas em vôos do programa Soyuz depois de 2011- chegou a um impasse devido ao furor causado pelas ações russas na Geórgia. O problema foi resolvido no mês passado, quando o Congresso discretamente aprovou as verbas, mas as questões mais amplas continuam irresolvidas. E as preocupações de Griffin não se limitam a questões políticas envolvendo Washington e Moscou. Ele vem alertando repetidamente quanto ao rápido avanço do programa espacial chinês.

Em depoimento ao Senado no ano passado, Griffin afirmou que era provável que "a China coloque pessoas na Lua antes que consigamos retornar para lá".

A perspectiva causa preocupações ao deputado Tom Feeney, republicano da Flórida. Um de seus colegas no Congresso sugeriu recentemente que a nova base lunar deveria receber o nome do astronauta Neil Armstrong, o primeiro homem a pousar na Lua. Feeney se lembra de ter respondido: "Mas o que o leva a imaginar que os chineses permitirão que demos o nome de um dos nossos astronautas à base deles?"

A crescente tensão com a Rússia complica uma longa aliança espacial internacional que ajudou a reduzir as tensões na era da guerra fria, especialmente entre o pessoal que servia nas linhas de frente.

William Shepherd, primeiro comandante da estação espacial e antigo integrante dos comandos da marinha dos Estados Unidos, conhecidos como SEAL, se lembra de quando ele e seu colega russo de tripulação, Yuri Gritzenko, completaram suas órbitas iniciais da Terra; os dois veteranos da guerra fria gostavam de apontar para as bases nas quais, em anos precedentes, haviam treinado e esperado em prontidão pelo início das possíveis hostilidades.

"Percebi naquele momento que já não éramos norte-americanos ou russos", disse Shepherd. "Havia alguma coisa naquela experiência que transcendia as velhas dimensões".

A parceria surgiu nos anos 90, quando a União Soviética e sua economia entraram em colapso e o conhecimento russo sobre colocar pessoas - ou bombas para atacar lugares distantes - em órbita estava em risco de cair em mãos de países hostis. Ao pagar para ajudar a manter o programa espacial russo, a argumentação proposta afirmava, os Estados Unidos estavam limitando a proliferação de armas.

Pela metade dos anos 90, norte-americanos começaram a servir na estação espacial russa Mir, enquanto Estados Unidos e Rússia planejavam a nova Estação Espacial Internacional.

Os dois iniciais eram caracterizados pela cautela mútua. Mark Bowman, um prestador de serviço aos russos naqueles primeiros anos e hoje de volta a Moscou como representante da Nasa, conta que Korolev, onde fica o controle de missão para os vôos russos, era "uma cidade fechada", quando ele a visitou pela primeira vez em 1993. "Estrangeiros não entravam", conta.

Hoje, dezenas de trabalhadores da Nasa vivem permanentemente na Rússia e outras dezenas visitam o país para treinamento, lançamentos e poucos. "Eu arriscaria dizer que as pessoas que trabalham na Nasa conhecem a Rússia melhor do que o pessoal de qualquer outro ramo do governo", diz Kelly, o astronauta.

Susan Eisenhower, especialista nas relações entre Rússia e Estados Unidos e nos programas espaciais de ambos, disse que os russos provaram, quando da perda do Columbia, que eram capazes de honrar seu lado do acordo, ao continuar transportando norte-americanos à estação espacial. "Quando não nos restava escolha devido aos problemas com os ônibus espaciais, os russos poderiam ter nos chantageado em um momento de tragédia mas não o fizeram", ela diz.

Vitaly Davidov, diretor assistente da Roscosmos, a agência espacial russa, disse em entrevista no controle de missão que a Rússia honraria seu compromisso de transportar as tripulações da estação espacial. Isso não significa que as coisas serão fáceis.

Os Estados Unidos e a Rússia estão em disputa sobre muitas questões comerciais e políticas. Mas Michael Krepon, um dos fundadores do Centro Henry L. Stimson, uma instituto de pesquisa política, disse que embora o monopólio espacial russo crie riscos, "existe uma etiqueta já muito antiga. Ninguém quer interferir com a segurança dos seres humanos que estão em missões espaciais".

"Não creio que as coisas devam ficar muito feias, caso a indisponibilidade de espaçonaves norte-americanos persistir", disse Krepon. "Mas os custos serão elevados".

Atualmente a Cidade das Estrelas serve como centro da parceria entre Estados Unidos e Rússia
Atualmente a Cidade das Estrelas serve como centro da parceria entre Estados Unidos e Rússia

Tradução: Paulo Migliacci

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